Thursday, May 7, 2009

«Corrente de Pensamento»

Folheando o livro com mãos mortiças, duas ou três de cada vez, os seus olhos fixaram a poltrona marron detalhada com floreados orientais. Fernanda ficou imóvel com uma página por entre os dedos pálidos e finos. Não pestanejou sequer. O castanho, quase preto, por detrás de lascivas pestanas pousou sobre o seu consorte. A pele que outrora lhe parecia de um bonito tom para um homem da sua nobreza era agora demasiado escura, queimada pelas suas inúmeras viagens a Brasil e a ilhas por descobrir. As linhas e rugas nos cantos dos olhos e que marcavam a sua testa demasiado estreita lhe tinham parecido adoráveis, sinais de um homem maduro e atraente, faziam-no agora demasiado velho, cansado, a cair aos bocados.
Posou o romance que lhe tinha despertado a mais devida atenção antes de Castro entrar na sala. A presença de Castro perturbava-lhe a leitura e o sossego; já não a fazia palpitar de paixão, e Fernanda realizou que ele agora era ‘Castro’ para ela, já há muito esquecido o seu querido ‘Mário’, alto e forte, com uma robustez nos seus ombros e braços que a faziam pecar na sua mente com o desejo de ser agarrada e estragada por ele.
Foi há um mês atrás que começou a reparar nos pequenos detalhes, actualmente muito importantes, que lhe saltaram durante anos e anos de casamento. Fernanda remexeu os vestidos por baixo de si, ajeitando a sua posição no clássico chaise longue. Desde aquela noite em que ela lhe sussurrou carinhosamente ao ouvido que o queria conhecer melhor, até ao mais ínfimo e insignificante pormenor, ela o continuava a arrepender. O homem ideal desmoronou-se perante os seus olhos, e por detrás dele revelou-se a besta imunda, escura, nojenta e flácida que estava agora sentada à sua frente. A memória dos seus grunhidos moribundos e o odor acre da sua transpiração trazia chuva num dia límpido e quente. Onde deveria estar vigor masculino estava gordura excessiva das jantaradas de leitões, perdizes, frango, e abuso do pão de manteiga pela manhã.
Fernanda inevitavelmente suspirou o mais breve possível. Quando Castro estava com ela o ar parecia perder qualidade. O nojo físico que sentia por ele estava a torná-la paranóica, suspeitava ela. Encolheu as suas pernas para si com o medo de ele as tocar com as suas.
Ela queria ir longe, fugir. Ignoraria o seu estado de casada, começaria uma vida nova numa casa mais pequena e mais quente, não tão enorme e fria como esta em que passava noites no outro lado da cama com medo do seu silêncio.
Os cantos dos seus delicados lábios se ergueram. Viria a encontrar um homem, alto, forte, jovem, viril e másculo como no romance que jazia na pequena mesa ao seu lado. Ele seria reservado, teria uma aura misteriosa que o rodeava de encanto e charme, tratá-la-ia com delicadeza em público e na sua privacidade viria a enche-la de paixão.
Fernanda levantou o seu livro. Por enquanto, só sonhar.

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